Toda cidade interiorana convive com suas pequenas lendas locais, aquelas figuras e personalidades que de alguma forma se destacam e viram vidraças, sempre sujeitas às pedradas vindas da opinião pública. Jundiaí não é diferente: uma província embebida em moral de padreco e línguas afiadas, uma sociedade que parece ser o retrato de uma solteirona frigida e amargurada, um feudo de meia dúzia de sobrenomes.
Eu pensava em tudo isso no fim da tarde do domingo, quando, depois da sequência de leves porres somente de quinta a sábado – porque, de uns tempos pra cá, venho maneirando – voltava do mercado. Fui comprar umas garrafas de suco de laranja. Eu estava prestes a atravessar a Rua Petronilha Antunes, quando um carro novíssimo, ziguezagueante, me surpreendeu dando uma freada brusca na contramão.
Som altíssimo de rock’n’roll farofento, vozerio de gente feliz e descontraída.
– E-aí-manooo!!! – gritou o motorista antes de baixar totalmente o vidro insulfilmado.
– Tudo indo, você viu que pegou a contramão? – eu gritei.
– Relaxa, a gente é contra o sistema mesmo, ahahaahahaAHAH– disse a voz obscura.
Eu conhecia aquela risada esganiçada.
– Manoooo, o mercado ainda tá aberto?
– Vai fechar daqui uns vinte minutos, eu acho.
– Pode crer, pode crer. Manoo, essa cidade é um porre, não é?
– De cerveja quente, sempre – respondi.
Quando os vidros do New Beetle abriram por inteiro e a densa fumaça dissipou um pouco eu pude notar que quem dirigia o carro era o talentosíssimo e criativíssimo cantor de músicas covers pasteurizadas de sucesso presumível dos anos 80 e 90,S. Klein, um antigo desafeto meu.
– Manoooo, ahahah, eu sou muito louco, sabia? – ele disse, talvez sem me reconhecer.
– Imagino.
– Heyguy, você mora por aqui, meu manooo?
– Sim, dobrando a esquina, à esquerda.
– Pode crer,maninhoooo. Cara, se liga, tem água na sua house?
– Sim, claro, apesar de muito cara, eu paguei a conta de água deste mês. – eu respondi.
– Então, você pode me dar um copo d’água, é que vou fazer um supershow daqui a pouco e preciso cuidar da garganta, pode ser manooo?
A sabedoria milenar da guerra costuma dizer que é sempre melhor ter os inimigos por perto, mais ainda que os amigos. Falei para ele estacionar o carro e indiquei o caminho.
Do automóvel desceram as figurinhas carimbadas do chiqueunderground jundiahyense, só gente que é tendência:
1 – C. G. a princesinha biscoiteira, que vive postando fotos escandalosas com seus gatos e livros nas redes sociais para angariar curtidas, diz que é poeta, artista e agitadora cultural e, a cada oito meses, viaja para a África do Sul, para abraçar crianças na miséria em missão humanitária, ou para Nova York;
2 – R. C. o maior revolucionário político de todos os tempos, que certa vez iniciou uma incrível manifestação histórica em seu colégio particular – o mais caro da cidade – porque o ar-condicionado da sala de aula havia quebrado e isso era um fato opressor;
3 – L. M., a famosa junkyzinha de Jundiahy que é adoradora da sétima arte, ultra-pós-vegana, ultra-pós-feminista, ultra-pós-baladeira-de-plantão, ultra-pós-pan-sexual, ultra-pós-moderna e que fez mapas astrais e psicológicos dos seus inúmeros affairs; e
4 – V. H. grande artista plástico e trissexual, depressivo em tempo integral que, já aos 21 anos, recusara a mesada dos pais de R$ 12.000,00 e começou do zero, com sua pequena herança, um estúdio de tatuagem e experimentações psicoativas, ele também é sócio do bar mais alternativo das redondezas, muitas garotas e garotos sonham ser concierges (porteiros ou porteiras ou porteirxs) nesse point, mas precisamantes passar pelo teste do fundinho da garrafa, variação desconstruída do teste do sofá que o próprio V. H. inventou.
Todas as iniciais acima são verdadeiras representatividades, lideranças culturais para a cidade. O bardo S. Klein é o líder, artista nato, txtxs adoram excursionar, sobretudo para os picos nevados-alcaloides das biqueiras do Tamoio, São Camilo e Fepasa.
– Vou aproveitar para levar o meu violão hippie customizado de apenas £ 6.999, 99 e repassar as músicas, GodSave the Queen! – disse S. Klein.
– TOP, TOP, TOP!!! – concordaram txtxs, em uníssono de dentro do automóvel.
Abri a porta do sobradinho já um pouco arrependido da minha cortesia.
– Cara, que super top a sua casa, dá pra fazer uma mega instalação artística antropofágica-surrealista-psicodélica-decadentista e fazer uns drinks gourmet, tipopiña colada com hortelã, caipirinha de rúcula, mojitos de rabanetes e margaritas de alface – disse V. H.
– Nossa, esses espaços minimalistas, eu super topo umas fotos tops totalmente nua para conscientizar toda a população de Jundiaí sobre a opressão que sofro sobre meu corpoobjetificado, vou ligar pra minha mãe agora e ver se a minha faxineira, ou a governanta, lavou meus microshorts. – disse C. G., toda espevitada.
– Daria um ótimo quartel revolucionário, poderíamos nos reunir contra toda a podridão elitista, endinheirada, carcomida, plutocrática, capitalista dessa cidade maldita e despolitizada – afirmou com brilho nos olhos R. C. que, imediatamente, ligou para o próprio pai – um imobiliário local – só para xingá-lo de velho neofascista castrador. R. C. faz terapia para curar-se dos seus traumas de infância por causa de algumas viagens para a Disney.
– Dá pra fazer uma conexão cósmica com os ascendentes e os planos desencantados das forças angelicais místicas, a lua está em aquário, o sol está em mercúrio; assistir todos os filmes do Godard, Glauber Rocha, Bergman, Akira Kurosawa, Stanley Kubrick, Martin Scorsese, Tarkovski; e, claro, ficar muito loucona porque eu sou a louca dos bares cults dessa terra falocêntrica. – disse L. M.
– Manooo, que casa ótima, que acústica magistral, você optou por ter poucos móveis para seguir a estética britânica do desapego pós-Jon-Lennon-e-pós-Liam-Gallagher? – exclamouS. Klein.
– Não, não, é que não tenho grana paraa mobilha e o aluguel ao mesmo tempo – eu respondi.
– Uau!! Que desmaterialismo rebelde!! – txtxs exclamaram com admiração e espanto por verem uma casa alugada de alguém com dinheiro curto.
– Mas, manooo, o que você acha de eu permitir que você me empreste o seu sobrado para eu gravar o próximo clipe da minha música – disse S. Klein.
– Você compõe? – eu alfinetei.
– Que é isso, meu maninhooo, tá doidão? Compor é coisa de elitista e burguês safado, eu faço os covers das melhores músicas de todos os tempos, eu sou desconstruído ao extremo e não produzo nada, sou contra o sistema, vivo da arte! – disse ele, já com um rosto entre a serenidade e as divagações canábicas.
– Entendi. E quais covers você faz? – eu disse. O grupo de admiradores estava de olhos vidrados na nossa conversa.
– Meu repertório segue a tendência do melhor momento do rock, além disso, meu sotaque é superplus ultra britânico, refinado e cheio de glamour, até pedi para V. H. fazer uma super ultra powermegablaster tatuagem da England’sflag nas minhas costas, quer ver?
– Opa, dispenso –eu disse.
– Migo, tipo assim, como é seu nome mesmo? – perguntou V. H., já com um semblante depressivo bad trip.
– Henrique Vitarelli.
– Nossa, que nome super#desconstruído, super#amei, super#admirei! – disse V. H.
– Daria um ótimo nome de mártireanarco-sindicalista – cortou o politizado R. C.
– Um nome é só um nome – eu disse, na esperança que alguém sacasse a referência a Shakespeare, nenhum deles sacou.
– Migo, tipo, suas iniciais são o contrário da minha, super top desconstruído. #maravilhoso, #empatia, #amei! Você tem rúcula ou rabanetes ou alface na sua geladeira vintage dos anos 80? – disse V. H.
– A geladeira é velha, só isso. Serve couve? – eu disse.
– Nossa, super#hashtag, #vintage, #geladeiratopvelha vou fazer umas batidas pra gente – disse e saiu saltitando V. H.
A tarde avançou para a noite, a noite virou madrugada e a madrugada virou um caos infinito ao som cacofônico do inglês britânico de S. Klein. Tive que afinar o violão dele diversas vezes, notei que o sotaque glamoroso de S. Klein era ótimo em macaquear os sons de algumas das bandas que eu mais detestava – e ele teimou em mostrar a bandeira da Inglaterra que ele carregava no corpo. Tanto C. G. quanto L. M. fizeram questão de que a festa-show fosse transferida para o sobrado. Enquanto isso, R. C. disparou mensagens de ordem para seus partidários, todos antifascistas de condomínios de luxo; e V. H não saia do meu pé, com suas batidinhas, caipirinhas, drinks e xavecos furados, eu percebi que ele queria mesmo era me pegar.
O meu sobrado ficou cheio da fina flor artística, desajustada e majoritariamente riquinha com sentimentos nostálgicos, várias dessas pessoas falavamempatia, gratidão e top a cada duas frases, mas, quando sóbrias, cruzam a calçada para não cumprimentarem ninguém além das amizades da própria bolha. Uma bolha que reina nas redes sociais. A maioria ali vive do famoso paitrocínio e demonstra um senso estético-político de uma ameba, mas são divertidíssimas. Viramos quase um dia e meio nessa loucura, no outro dia consegui um atestado e não fui trabalhar. Eles, elas, ilus, elus,ilxs e xlxs vieram aqui, gastaram suas pequenas fortunas agraciadas pelo suor dos sobrenomes e saíram totalmente felizes – foi uma doidice proibida de ser revelada nessas pobres linhas.
Ao término do fuzuê meu sobrado parecia ter encarado a turnê do Rolling Stones, quando jovens.
O importante é que peguei o número da junkyzinha de Jundiahy, pois queria algumas indicações de filmes e… Bom, eu conto em outra oportunidade.